segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Coisas da política

Quem mora em Osasco deve pelo menos ter ouvido falar na Vila Piauí, bairro localizado na Zona Norte da cidade, na divisa com São Paulo (região de Pirituba). O nome do bairro não é à toa. Lá vive gente que veio de Picos, Teresina, Caraúbas, Currais, Gilbués, Bocaina, Santo Antonio de Lisboa.
Na época vereador em Osasco pelo PT e em campanha para a reeleição, meu amigo Guima aceitou o convite de um cabo eleitoral da região para um churrasco com os piauienses – devidamente pago pelo parlamentar, é claro. Guima chegou ao local e entusiasmou-se. O Piauí inteiro estava lá. Conversa vai, conversa vem, Guima resolveu perguntar a um deles em qual colégio iria votar. A resposta: “Lá em Gilbués, mesmo, vereador. Aliás, ninguém aqui transferiu o título de eleitor, não”.


Sim ou não, eis a questão

Fenelón Guedes era um daqueles nordestinos arretados. Migrou para o sul maravilha com uma mão atrás e outra na frente. Fez a vida em São Paulo. Em meados dos anos 1980 elegeu-se vereador em Osasco pelo PMDB. Na época, o prefeito era Humberto Parro, do mesmo partido. Parro tinha maioria na Câmara e, portanto, folga na votação dos projetos. A oposição basicamente resumia-se aos dois vereadores do PT, João Paulo Cunha e Rosa Lopes Martins.
O voto em projetos importantes geralmente era nominal. Era normal, portanto, um vereador da situação votar “sim”. Numa sessão, Fenelón cochilava em sua cadeira. O presidente da Casa, Tonca Falsetti (PMDB), colocou em votação um projeto de autoria de João Paulo Cunha. Ao ouvir seu nome anunciado, não teve dúvidas: “Voto sim, seu presidente”. O líder do governo, Zé David, enquadrou o colega de bancada. Ao final da votação, Fenelón resolveu justificar seu voto: “Sr. presidente, votei 'sim' porque nesta casa nós sempre votamos 'sim' aos projetos. Como estava distraído, não sabia que votava num projeto do nobre colega João Paulo”. A gargalhada foi geral. Típico do caso em que o silêncio às vezes é precioso.

O cavalo que atravanca

Outra do Fenelón Guedes. Ao reclamar de um problema que a Prefeitura vinha “empurrando um problema com a barriga”, o nobre vereador resolveu inovar na explicação. Recorreu a uma imagem, digamos, “literária”. “A Prefeitura, senhor presidente, está agindo assim, como aquele povo que mora na rua de cima. Um cavalo morreu. A Prefeitura não foi tirar o cavalo do local. O bicho começou a feder. Então o pessoal se reuniu e resolveu transferir o cavalo em putrefação para a rua de baixo. Problema resolvido? Não, né? O pessoal da rua de baixo fez a mesma coisa. Levou o cavalo de volta para a rua de cima. Aí o pessoal da rua de cima faz o mesmo. Leva o dito pra rua de baixo. E o fedor aumentando, aumentando. Bem, era isso sr. Presidente”.
Sem entender nada, Tonca arguiu: “O problema do bairro é um cavalo morto, vereador?” De pronto Fenelón respondeu: “Claro que não! É um problema de tapa-buraco. A Prefeitura diz que foi a Telesp (aos mais novos, a atual Telefônica); a Telesp, que foi a Prefeitura. Não ficou claro?”

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Com preguiça na sexta


Como todos sabem, semana passada estive em Serra Negra, região conhecida por Circuito das Águas. Não sei se foi a água ou a tal “Bico Doce” que saboreei por aquelas bandas, mas entrei em curto-circuito. Preciso recarregar as baterias. Como estou com imensa preguiça de pensar, reproduzo um texto pra lá de saboroso de Luiz Antônio Simas, um professor de História carioca dono do blog “Histórias Brasileiras"
Fala a verdade, tô parecendo aqueles alunos “espertoooos” que fazem trabalho escolar usando o Ctrl C, Ctrl V.
SEMANA DE PROVA
Estamos, eu e meus alunos, em semana de prova. Nesse exato momento tenho ao meu lado quatro simpáticos pacotes para corrigir. É divertido e trabalhoso.

Ao longo desses anos, li coisas monumentais, de que até Deus duvida e o capeta desconfia. Algumas, pela originalidade, mereciam ganhar o ponto. Exemplos que me ocorrem:

Cite dois acordos presentes no Tratado de Petrópolis de 1903.
R: O Brasil compra o Acre da Bolívia e vai construir a ferrovia Montanha-Maomé [esclareço para os menos versados no babado: A ferrovia é a Madeira-Mamoré].

Caracterize a Era Mauá.
R: Sim, era Mauá.

Cite dois grupos presentes na formação do Quilombo dos Palmares.
R: Judeus e bons samaritanos.

Caracterize os povos indígenas da América pré-colombiana.R: Os incas, mouros e histéricos viviam na América desde o início do planeta e bem antes de Colombo.

Apresente duas razões para a crise que levou ao suicídio de Getúlio Vargas.
R: Nenhuma, já que ele não se matou. Foi assassinado enquanto dormia.

Cite duas medidas joaninas que tenham transformado a estrutura urbana da cidade do Rio de Janeiro.
R: D. João criou várias coisas. O jardim zoológico e a Ponte Rio-Niterói, por exemplo.

Aponte uma medida do governo Ernesto Geisel para o setor de energia, no contexto da primeira crise do petróleo.
R: A criação do Rio São Francisco.

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Retorno


De volta a Sampa depois de uma semana desgastante em Serra Negra, onde trabalhei na 4ª Conferência de Educação da APEOESP. A cidade é agradável, mas pouco tempo livre tivemos. Só numa das noites nos demos o direito de uma cerveja gelada entre amigos na praça principal da cidade - também um dos pontos noturnos de diversão.
Toda vez que vou a Serra Negra não deixo de tomar uma deliciosa cachaça da região, a "Bico Doce".
Voltei não voltando, não sei se vocês me entendem. Estou sem idéias e pique para retomar com toda força o meu blog. Escrevo esta nota para dar satisfação aos meus três ou quatro leitores.
Tenho dito!

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Meus sais

Na quinta-feira meu filho estava “navegando” pela TV buscando o que ver. Estacionou por alguns minutos no SBT, num programa chamado “BO”- uma clara referência a boletim de ocorrência. No momento estava no ar uma matéria sobre as chuvas que castigaram a Baixada Fluminense. O repórter, vestido com uma bota até os joelhos, comentou que a água era “poluída”. Depois, fez uma senhora, sem qualquer proteção e aparentemente descalça, passear pela enchente, nas mesmas águas “poluídas”, pode?
O pior veio em seguida. A matéria era sobre um assalto. A narrativa da repórter: “depois CHEGOU mais dois ladrões”. Ai meus sais!

Em tempo: Em função de um trabalho fora de São Paulo entrarei em recesso neste espaço por alguns dias.

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Zé Celso: Lula é antropófago


As declarações de Caetano Veloso à jornalista Sonia Racy, do Estadão (o porta-voz dos tucanos), publicadas na semana passada, deram o que falar (leiam nota abaixo). No “Caderno 2”, do mesmo Estadão, de terça, o ator, diretor e dramaturgo Zé Celso Martinez Corrêa, publicou um delicioso artigo, intitulado “Tropicália, sob o signo de escorpião”. O catatau de Zé Celso tem mais de meia página. Merece ser lido na íntegra, mas como o espaço é exiguo e como também não quero tirar a paciência de meus dois ou três leitores, reproduzo alguns trechos:
“Acho, diferentemente de Caetano, que temos em Lula o primeiro presidente antropófago brazyleiro, aliás, Lula é nascido em Caetés, nas regiões onde foi devorado por índios analfabetos o Bispo Sardinha que, segundo o poeta maior da Tropicália, Oswald de Andrade, é a gênese da história do Brazil. Não é o quadro de Pedro Américo com a 1ª Missa como a imagem fundadora de nossa nação, mas a da devoração que ninguém ainda conseguiu pintar. (…)
“Lula tem phala e sabedoria carnavalesca nas artérias, tem dado entrevistas maravilhosas, onde inverte, carnavaliza totalmente o sendo comum do rebanho. Por exemplo, quando convoca os jornalistas da Folha de S. Paulo a desobedecer seus editores e ouvir, transmitindo ao vivo a phala do povo. A interpretação da editoria é a do jornal e não a da liberdade do jornalista. Aí, quando liberta o jornalista da submissão ao dono do jornal, é acusado de ser contra a liberdade de expressão. (…)
“Essa sabedoria filosófica reflete-se na revolução cultural internacional que Lula criou com Celso Amorim [Ministro das Relações Exteriores] e Gil [Gilberto Gil, ex-ministro da Cultura] para a política internacional. O Brasil inaugurou uma política de solidariedade internacional. Não aceita a lógica da vendetta, da ameaça, da retaliação. Porpõe o diálogo com todos os diabos, santos, mortais, tendo certa ojeriza pelos filisteus como ele mesmo diz. Adoro ouvir Lula falar, principalmente em direto com o público, como num teatro grego. Mais que alfabetizado na batucada da vida, Lula é um interprete dela: a vida, o que é muito mais importante que o letrismo. Quantos eruditos analfabetos não sabem ler os fenômenos da escrita viva do mundo diante de seus olhos? (…)
“A própria pessoa de Lula é culta, apesar de não gostar, ainda, de ler. Acho que quando tirar férias da Presidência vai dedicar-se a estudar e aprender mais do que já sabe em muitas línguas. (…) Lula é um escândalo permanente para a mente moralista do rebanho. (…) Lula faz política culta e com arte. Sabe que a cultura de sobrevivência do povo brasileiro não é super, é infra estrutura.”

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Lula, os argentinos e Caetano


Na quinta-feira, 5, recebemos no sindicato em que trabalho a visita de duas professoras argentinas, representantes do Sindicato Unificado de Trabajadores de la Educación de la Provincia de Buenos Aires. Em conversa informal, Esther Gomes Bermejo perguntou-nos sobre o governo Lula. Disse-nos que ele é muito admirado na Argentina. “Creio que é admirado em toda a América Latina”, arriscou.
Bermejo contou-nos ter estranhado a reação de algumas pessoas no Brasil em relação ao nosso presidente. “Contudo, compreendo. Na Argentina, o mesmo acontece em relação aos Kirchener, a elite não gosta deles (referindo-se ao casal, o ex-presidente e sua esposa, Cristina, que ocupa o comando da Casa Rosada)”. De acordo com a professora, a imprensa argentina posiciona-se claramente contra o governo. “Não é só contra a presidente da Argentina, não, demonizam o Chavez, o Evo Morales.” Não é muito diferente do que acontece no Brasil
O “Estadão”trouxe hoje, 6, a matéria “Sindicato pró-Kirchner sitia 'Clarín' e 'La Nación'”, dois jornais conservadores e de grande circulação. Aos fatos: o Sindicato dos Caminhoneiros realizou bloqueio para impedir a saída de caminhões que fazem entrega dos jornais, pois as empresas não cumpriram acordo de incluir os funcionários que trabalham com a distribuição de jornais e revistas ao sindicato dos caminhoneiros. A interpretação do jornalão: censura. Isto porque o presidente do Sindicato dos Caminhoneiros, Pablo Moyano, é filho de Hugo Moyano, secretário-geral da Confederação Geral dos Trabalhadores, que seria ligada ao governo. Ou seja, uma ação sindical – concorde-se com ela ou não – não pode ser traduzida como tentativa de censura aos jornais.

Grosseria

Gosto muito de Caetano Veloso como compositor. Marcou toda uma geração com suas belas canções. Mas quando posa de intelectual... Lembro-me que na década de 1980 travou polêmica com o jornalista Paulo Francis – então correspondente da “Folha” e da Globo em Nova York. Ninguém aguentava mais ler Caetano e Francis trocando farpas pelas páginas do jornal paulista. Em entrevista a Sônia Racy, do Estadão, na quinta, Caetano desancou Lula para dizer que vota na ex-ministra Mariana Silva: “Marina é Lula e é Obama ao mesmo tempo. Ela é meio preta, é uma cabocla. É inteligente como o Obama, não é analfabeta como o Lula, que não sabe falar, é cafona falando, é grosseiro”.
Como defendo as liberdades em geral, creio que todo mundo tem de ter suas preferências – sejam elas quais forem – e de defendê-las. Mas entendo que Caetano foi preconceituoso, grosseiro e muito infeliz em suas declarações. Escolheu mal as palavras. Suas declarações foram cafonas e grosseiras.
Caetano já criticou abertamente Chico Buarque por este apoiar o governo Lula. Pelo jeito, Caetano não defende as liberdades... Creio que tem uma raiva imensa do Lula porque o presidente convidou Gilberto Gil para assumir o Ministério da Cultura, não ele.

Sobre FHC

As declarações de Caetano Veloso provocaram orgasmos em parlamentares do DEMO e do PSDB. Lobos em pele de cordeiro que se colocam como bastiões da ética. Conhecemos a história de muitos deles. Aliás, a tucanada e os “demos” têm se mostrado de uma incompetência na oposição – ou seria inapetência para com o papel, afinal esta estirpe esteve no poder 500 anos no Brasil.
O ex-presidente Fernando Henrique, o verdadeiro pai do “mensalão”, de vez em quando dá umas gritas, tentando ensinar-nos sobre como ser um estadista – coisa que nunca foi. Sobre a postura de FHC, a melhor análise quem fez foi o ministro do Planejamento, Paulo Bernardo: “O risco que ele corre é ficar parecendo o Salieri, que ficava criticando o talento de Mozart porque ele não conseguia ter o mesmo talento, não conseguir ter o mesmo reconhecimento”.
Em tempo: o italiano Antônio Salieri foi compositor oficial da corte de José II, Arquiduque da Áustria. Conta a lenda (nada é provado) que teria uma grande inveja de Wolfgang Amadeus Mozart. Esta versão foi criada pelo dramaturgo Peter Shaffer, depois adaptada para o cinema por Milos Formam, com o título Amadeus. Aliás, um belíssimo filme.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Marighella


Passava um pouco das 20 horas daquela terça-feira, 4 de novembro de 1969. Como em outras vezes, o líder da ALN (Ação Libertadora Nacional), Carlos Marighella, marcara um “ponto” com os freis dominicanos Ivo e Fernando na altura do número 806 da Alameda Casa Branca. O que Mariguella não sabia era que os dominicanos tinham sido presos e torturados e nem supunha que cairia numa emboscada. Sob o comando do temido delegado Sérgio Fleury, 29 agentes fortemente armados haviam cercado o local e aguardavam sua chegada. Marighella foi fuzilado.
Figura política que se tornou conhecida como militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB), foi deputado no Congresso que elaborou a Constituição de 1946.
Para marcar os 40 anos de sua morte, às 11 horas de hoje, 4, houve um ato na Alameda Casa Branca, onde foi erguido um memorial no exato local onde ele foi morto. Uma sessão solene na Câmara Municipal de São Paulo, às 19 horas, marcou a concessão do título de Cidadão Paulistano, in memorian.
Há dez anos o intelectual Antônio Cândido escreveu uma texto em homenagem ao guerrilheiro morto:
“Naquele momento elas não mataram apenas o militante intimerato de uma organização de luta, mas um líder que encarnava as aspirações de liberdade e justiça do povo brasileiro. Os que assumem a grave responsabilidade de combater pelo interesse de todos tornam-se símbolos e constituem patrimônio coletivo. Carlos Marighella deu a vida pelos oprimidos, os excluídos, os sedentos de justiça. Ao fazê-lo, transcendeu a sua própria opção partidária e se projetou na posteridade como voz dos que não se conformam com a iniqüidade social.”
Ontem, 3, durante um Congresso em Olinda-PE, o presidente Lula fez-lhe uma homenagem. Chamou-o de "herói" para arrepio dos Bolsonaros da vida...

No quarto da Estelinha


Neste sábado, 7, às 17 horas, acontece o lançamento do livro No quarto da Estelinha, do meu amigo Paulo Netho – com ilustrações de Suppa. O evento será na Livraria Panapaná, na rua Leandro Dupré, 396, Vila Clementino. Em tempo: haverá participação especial do Chico dos Bonecos. Um programa imperdível para a garotada!

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Fim do livro?


Há tempos venho lendo sobre o surgimento de um aparelho chamado e-books – como o Kindle, da Amazon, que chega ao País por módicos R$ 900,00 – , o leitor eletrônico de livros digitais. Fiquei pensando com meus botões (aliás, meus botões já estão cansados de pensar): será o fim do livro? Adoro livros. Adoro os cheiros de livro, do papel, da tinta de impressão. Será que os e-books terão cheiro? Já tentei ler livros em formato PDF. Não consegui.
Neste diálogo surdo com meus botões, um deles me alertou: que tempos vivemos estes da chamada pós-modernidade, em que a tecnologia convive com o arcaico. Quantos brasileirinhos nunca tiveram contato com um livro, o folearam, o cheiraram?
Na sexta-feira o escritor Milton Hatoum (um dos melhores escribas da atualidade, autor de Dois Irmãos, Cinzas do Norte, entre outros) tratou do assunto em sua crônica quinzenal no “O Estado de São Paulo”. Um primor de texto. A certa altura se questiona: “É como se da noite para o dia milhares de plaquetas eletrônicas fosse aterrissar nos povoados, cidades e aldeias pobres e miseráveis deste planeta. A tecnologia antes da caligrafia, antes mesmo do desenho, dos rabiscos, dos jogos infantis.”
A segunda parte do seu texto, intitulado Notícias sobre o fim do livro, é tocante. Por isso a reproduzo abaixo:

“(…) Sobre o fim do livro, tenho duas breves histórias para contar. A primeira é um sonho, ou um pesadelo mais radical e futurista que a plaqueta eletrônica: um chip que armazenasse a biblioteca do universo, uma biblioteca cujo acervo seria renovado por um único comando externo. O chip seria implantado no ombro, na perna ou numa artéria do coração do leitor. Um chip com bilhões de palavras no coração. Há algo mais poético? Mais sublime?
Um chip implantado no cérebro seria robótico demais, além de ser uma cena comum de ficção científica, albo bem menos estranho do que uma serpente de fogo numa montanha de gelo. Com esse chip cravado no corpo, o leitor não teria necessidades de olhar para uma tela: a página escrita apareceria no ar, como se fosse uma holografia. Textos soltos no espaço, sem qualquer suporte. A mais fina e diminuta tele será anacrônica.
A outra história é coisa do passado.
Ao amanhecer de um dia de 1979, conheci um piauiense que migrara para São Paulo na década de 1960. Ele era dono de uma pequena pastelaria na antiga rodoviária, onde eu comia pastel às cinco da manhã, antes de pegar o ônibus para Taubaté.
Donato me contou passagens de sua vida em um povoado miserável, próximo a Santo Antônio dos Milagres. Aprendeu a ler com uma velha, que era uma vizinha de tapera onde ele morava. Lia bula de medicamentos, lia jornais velhíssimos que embrulhavam latas de leite enviadas pelo governo, lia as palavras impressas nessas latas.
Em um dia eu li um livro, disse Donato, emocionado. Um livro que um vendedor de bugigangas deixou para mim. Lia devagar, duas, três vezes cada frase, cada parágrafo. De vem em quando, parava de ler para pensar. Li tantas vezes meu único livro que decorei trechos mais bonitos. Minha vida não valia nada, nem uma casca de cebola. Eu era um jovem que não tinha onde cair morto, como se diz. Aí consegui um emprego em Santo Antônio. Trabalhei quatro anos no balcão de uma mercearia, economizei uns tostões e vim para São Paulo. Quando ganhei um dinheirinho, abri essa pastelaria. E um dia viajei para o Rio. Queria conhecer quem tinha publicado aquele livro, queria ver o edifício da editora, as pessoas que trabalhavam com livros. Não tive coragem de entrar, fiquei espiando na calçada, olhando a placa com o nome da editora. Aí me deu vontade de fazer uma coisa, e fiz mesmo. Abracei as paredes, beijei as paredes da editora e beijei o livro que mudou a minha vida.”