terça-feira, 3 de novembro de 2009

Fim do livro?


Há tempos venho lendo sobre o surgimento de um aparelho chamado e-books – como o Kindle, da Amazon, que chega ao País por módicos R$ 900,00 – , o leitor eletrônico de livros digitais. Fiquei pensando com meus botões (aliás, meus botões já estão cansados de pensar): será o fim do livro? Adoro livros. Adoro os cheiros de livro, do papel, da tinta de impressão. Será que os e-books terão cheiro? Já tentei ler livros em formato PDF. Não consegui.
Neste diálogo surdo com meus botões, um deles me alertou: que tempos vivemos estes da chamada pós-modernidade, em que a tecnologia convive com o arcaico. Quantos brasileirinhos nunca tiveram contato com um livro, o folearam, o cheiraram?
Na sexta-feira o escritor Milton Hatoum (um dos melhores escribas da atualidade, autor de Dois Irmãos, Cinzas do Norte, entre outros) tratou do assunto em sua crônica quinzenal no “O Estado de São Paulo”. Um primor de texto. A certa altura se questiona: “É como se da noite para o dia milhares de plaquetas eletrônicas fosse aterrissar nos povoados, cidades e aldeias pobres e miseráveis deste planeta. A tecnologia antes da caligrafia, antes mesmo do desenho, dos rabiscos, dos jogos infantis.”
A segunda parte do seu texto, intitulado Notícias sobre o fim do livro, é tocante. Por isso a reproduzo abaixo:

“(…) Sobre o fim do livro, tenho duas breves histórias para contar. A primeira é um sonho, ou um pesadelo mais radical e futurista que a plaqueta eletrônica: um chip que armazenasse a biblioteca do universo, uma biblioteca cujo acervo seria renovado por um único comando externo. O chip seria implantado no ombro, na perna ou numa artéria do coração do leitor. Um chip com bilhões de palavras no coração. Há algo mais poético? Mais sublime?
Um chip implantado no cérebro seria robótico demais, além de ser uma cena comum de ficção científica, albo bem menos estranho do que uma serpente de fogo numa montanha de gelo. Com esse chip cravado no corpo, o leitor não teria necessidades de olhar para uma tela: a página escrita apareceria no ar, como se fosse uma holografia. Textos soltos no espaço, sem qualquer suporte. A mais fina e diminuta tele será anacrônica.
A outra história é coisa do passado.
Ao amanhecer de um dia de 1979, conheci um piauiense que migrara para São Paulo na década de 1960. Ele era dono de uma pequena pastelaria na antiga rodoviária, onde eu comia pastel às cinco da manhã, antes de pegar o ônibus para Taubaté.
Donato me contou passagens de sua vida em um povoado miserável, próximo a Santo Antônio dos Milagres. Aprendeu a ler com uma velha, que era uma vizinha de tapera onde ele morava. Lia bula de medicamentos, lia jornais velhíssimos que embrulhavam latas de leite enviadas pelo governo, lia as palavras impressas nessas latas.
Em um dia eu li um livro, disse Donato, emocionado. Um livro que um vendedor de bugigangas deixou para mim. Lia devagar, duas, três vezes cada frase, cada parágrafo. De vem em quando, parava de ler para pensar. Li tantas vezes meu único livro que decorei trechos mais bonitos. Minha vida não valia nada, nem uma casca de cebola. Eu era um jovem que não tinha onde cair morto, como se diz. Aí consegui um emprego em Santo Antônio. Trabalhei quatro anos no balcão de uma mercearia, economizei uns tostões e vim para São Paulo. Quando ganhei um dinheirinho, abri essa pastelaria. E um dia viajei para o Rio. Queria conhecer quem tinha publicado aquele livro, queria ver o edifício da editora, as pessoas que trabalhavam com livros. Não tive coragem de entrar, fiquei espiando na calçada, olhando a placa com o nome da editora. Aí me deu vontade de fazer uma coisa, e fiz mesmo. Abracei as paredes, beijei as paredes da editora e beijei o livro que mudou a minha vida.”

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