quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Um adeus


Ontem uma grande figura – embora nos últimos tempos tivéssemos um pouco afastados, com certeza o sentimento de amizade nunca nos abandonou – deixou nossa convivência terrena. Jeanete Beauchamp, a Jane, partiu fora do combinado.
Conheci a Jane em meados da década de 1980, por meio de minha companheira. Na época, ela era dirigente sindical. Uma valente nas trincheiras da luta pela melhoria da qualidade do ensino em nosso País; uma mulher que sonhava mudar o mundo.
Nestas horas, na impossibilidade de construirmos o futuro, nos resta recordar o passado – “Nesse desassossego que o descanso/ Nos traz às vidas quando só pensamos/ Naquilo que já fomos,/E há só noite lá fora.” Lembro-me das festas que fazíamos em casa, das campanhas políticas – dela e de outras pessoas que nós apoiávamos. Tudo transforma-se num filme que precisamos rever. Recordar para nunca esquecermos os amigos.
Apesar do sobrenome francês, Jane tinha origem libanesa (seus avós, ou bisavós, não me recordo agora, migraram primeiro para o Canadá). E adorava comida árabe. Às vezes saíamos na hora do almoço para saborear uma berinjela recheada – ou pimentão. Uma iguaria preparada num pequeno restaurante comandados também por libaneses escondido numa das galerias entre a 24 de Maio e a Barão de Itapetininga.
Agora nossa amiga volta para a sua terra, Assis, no interior do Estado, para seu descanso eterno.
Jane adorava Fernando Pessoa, o poeta português. Dizia-nos que todas as manhãs, ao acordar, lia um poema dele. Era sua oração. Abaixo reproduzo um poema de Ricardo Reis, um dos heterônimos de Fernando Pessoa, para homenageá-la.




Cada coisa a seu tempo tem seu tempo.
Não florescem no inverno os arvoredos,
Nem pela primavera
Têm branco frio os campos.

À noite, que entra, não pertence, Lídia,
O mesmo ardor que o dia nos pedia.
Com mais sossego amemos
A nossa incerta vida.

À lareira, cansados não da obra
Mas porque a hora é a hora dos cansaços,
Não puxemos a voz
Acima de um segredo,

E causais, interrompidas, sejam
Nossas palavras de reminiscência
(Não para mais nos serve
A negra ida do sol).

Pouco a pouco o passado recordemos
E as histórias contadas no passado
Agora duas vezes
Histórias, que nos falem

Das flores que na nossa infância ida
Com outra consciência nós colhíamos
E sob uma outra espécie
De olhar lançado ao mundo.

E assim, Lídia, à lareira, como estando,
Deuses lares, ali na eternidade,
Como quem compõem roupas
O outrora compúnhamos

Nesse desassossego que o descanso
Nos traz às vidas quando só pensamos
Naquilo que já fomos,
E há só noite lá fora.

(Ricardo Reis)

Nenhum comentário:

Postar um comentário